Reflexão sobre o papel constitucional do conselheiro relator é tema de artigo
14/03/2017 14:45 Educação Ronaldo Chadid ----

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“Apenas ao Conselheiro Relator é dada a competência para emitir juízo de valor sobre as matérias tratadas em todos os processos instaurados pelo Tribunal de Contas”. A observação é do vice-presidente do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul, conselheiro Ronaldo Chadid em artigo intitulado: “O protagonismo do Conselheiro Relator no exercício da função jurisdicional do Tribunal de Contas”.
O conselheiro Ronaldo Chadid esclarece que as competências constitucionalmente reservadas aos Ministros do Tribunal de Contas da União, em número de nove, e sistematicamente, aos Conselheiros dos Tribunais de Contas Estaduais, em número de sete, não podem ser atribuídas, e, principalmente, usurpadas por outras autoridades.
O sistema de Controle Externo nos Tribunais de Contas, além dos conselheiros, tem ainda em sua composição outras categorias: o Ministério Público de Contas, os auditores substitutos de conselheiros, e também os auditores estaduais de controle externo. Ao longo de cinco páginas, o conselheiro Ronaldo Chadid, apresenta a evolução histórica da instituição Tribunal de Contas por força do Decreto nº 966-A (sete de novembro de 1890), quando da Proclamação da República, até a Constituição cidadã de 1988, que nos artigo 70 a 75 estabelece como deve ser feita a fiscalização contábil, financeira e orçamentária da administração pública, e destaca em sua reflexão o protagonismo do conselheiro relator na decisão das Cortes de Contas.
Currículo - Ronaldo Chadid é conselheiro e vice-presidente do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul. Presidente da Academia Sul-matogrossense de Direito Público. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Especialista em Direito Civil e Empresarial pelo Instituto Nacional de Pós-Graduação/UCDB. Cursou MBA em Gestão Pública pela Uninter de Curitiba/PR; Especialista em Direito Administrativo pela PUC/SP. Mestre em Direito do Estado pela Universidade de Franca/SP; Doutorando em Direito Administrativo, pela Universidade de Salamanca/Espanha. Doutorando em Função Social do Direito Constitucional pela FADISP.
Leia a íntegra do artigo.
O PROTAGONISMO DO CONSELHEIRO RELATOR NO EXERCÍCIO DA FUNÇÃO JURISDICIONAL DO TRIBUNAL DE CONTAS
EVOLUÇÃO HISTÓRICA
A instituição Tribunal de Contas – essencial na estrutura político-administrativa do Estado e elemento imprescindível à garantia do regime democrático de direito – nasceu prontamente à derrocada do Império e à proclamação da República, por força do Decreto n.º 966-A, de 7 de novembro de 1890, com a nobre e importante tarefa de tornar o Orçamento uma instituição inviolável e soberana em sua missão de prover às necessidades públicas mediante o menor sacrifício dos contribuintes[2].
E, mesmo que ainda hoje muito se discuta a respeito da natureza jurídica e do caráter jurisdicional das decisões proferidas, as competências atribuídas às Cortes de Contas não são recentes. Elas aparecem pela primeira vez na Constituição Brasileira de 1934, pouco menos de meio século depois da Carta de 1891 – a primeira republicana –, que ainda sob a influência de Rui Barbosa, institucionalizou definitivamente o Tribunal de Contas da União, inscrevendo-o na disposição de seu artigo 89.
Naquela ocasião, a Constituinte de 1934 atribuiu ao Tribunal de Contas os deveres de acompanhar a execução orçamentária; registrar previamente as despesas e contratos; julgar as contas dos responsáveis por bens e dinheiros públicos; bem como emitir parecer prévio sobre as contas do Presidente da República para posterior encaminhamento à Câmara dos Deputados.
Anos depois, a ratificação da Constituição de 1967, dada pela Emenda Constitucional n.º 1, de 1969, retirou da Corte de Contas o dever de exame e julgamento prévio dos atos e contratos geradores de despesas, a despeito da manutenção da competência para apontar as falhas e irregularidades, que, se não sanadas, seriam, então, objeto de representação ao Congresso Nacional. Na mesma oportunidade, extinguiu-se o julgamento da legalidade de concessões de aposentadorias, reformas e pensões; restando a cargo do Tribunal apenas a apreciação da legalidade para fins de registro. O processo de fiscalização orçamentária e financeira também foi completamente reformulado, dando-se à Corte de Contas a incumbência para a realização de auditorias sobre as contas das unidades dos três poderes da União; instituindo, desde então, os sistemas de controle externo a Cargo do Congresso Nacional, com auxílio do Tribunal de Contas; e de controle interno, este a cargo do Poder Executivo e destinado a criar condições para um controle externo eficaz.
Finalmente, com a promulgação da Carta Política de 1988, o Tribunal de Contas, antes relegado à indefinição e à forte resistência ao seu progresso institucional, em razão da absoluta incompatibilidade do controle externo com o regime ditatorial vigente à época, foi alçado à condição de órgão republicano essencial ao aprimoramento do processo de consolidação da democracia do país, tendo competências exclusivas outorgadas pelo artigo 71; para as quais o legislador, com rigor científico na terminologia utilizada, ora empregou o verbo apreciar, ora fiscalizar, em outras, realizar inspeção e auditoria, mas em apenas um caso, julgar.
AS COMPETÊNCIAS JURISDICIONAIS E O PROTOGANISMO DO CONSELHEIRO RELATOR
É exatamente nesse momento, para o exercício das competências de natureza substancialmente jurisdicionais, ditadas pelo inciso II e consistentes na singular habilitação para julgar as contas dos administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público, e as contas daqueles que deram causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário, que exsurge a figura do Conselheiro Relator – verdadeira personificação da atividade jurisdicional especial, idealizada pelo constituinte originário, dotado de poder unipessoal para presidir a instrução dos processos afetos à competência do Tribunal de Contas.
As matérias objeto de tais processos, por tratarem de direitos indisponíveis[3], fazem com que a atuação da Corte deva obediência, não apenas aos primados basilares do direito administrativo – supremacia e indisponibilidade do interesse público –, como também aos princípios da oficialidade e da busca pela verdade real. Isso quer dizer que ao Conselheiro Relator, enquanto juiz natural das causas relativas às atividades de controle externo, compete agir de ofício, uma vez que tenha conhecimento de qualquer fato lesivo ao patrimônio público; e ainda, não permitir a paralisação do processo pela inércia das partes, ao contrário do que ocorre nas causas que tramitam perante o Poder Judiciário.
Diferentemente das relações processuais desenvolvidas em âmbito judicial – constituídas por autor, réu e juiz –, os processos de contas e de fiscalização submetidos ao Tribunal de Contas constituem-se de apenas duas partes: o(s) responsável(is) e o juiz, este representado, exclusivamente, pela figura do Conselheiro Relator. Esta composição processual decorre das competências atribuídas nas disposições dos artigos 70 e 71 da Constituição Federal.
O parágrafo único do artigo 70 é claro ao dispor que prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária; evidenciando, dessa forma, a obrigatoriedade da composição de um processo de contas por iniciativa do ente responsável pela gestão de recursos públicos, e a impertinência das figuras convencionais de autor e réu na relação processual existente em tais feitos.
Em decorrência disso, a relação processual que se estabelece nos feitos que tramitam perante o Tribunal de Contas, restrita apenas ao(s) responsável (is) e ao Conselheiro Relator, traz à Corte uma autonomia não prevista no Código de Processo Civil ou de Processo Penal, que, em linhas gerais, traduz-se na competência constitucional para agir de ofício, independentemente de qualquer provocação de terceiros, e para exigir que os responsáveis por dinheiros públicos se justifiquem por atos de gestão lesivos ao erário.
Há que se dizer, no entanto, que a faculdade conferida ao Tribunal de Contas para agir por livre iniciativa não exclui a possibilidade de sua atuação ser provocada por terceiros. Esta provocação materializa-se através de denúncias e representações que, uma vez autuadas, passam a dispor do mesmo tratamento dado aos processos ordinários de fiscalização, com a vantagem de tramitarem em caráter prioritário, caso estejam relacionadas a fatos inerentes à prestações de contas ou atos de pessoal sujeitos a registro, conforme previsão do artigo130, inciso II, do Regimento Interno do TCE/MS.
Além disso, buscando legitimar a atuação independente da provocação de terceiros, o artigo 71, inciso IV, da CF/88, conferiu ao Tribunal de Contas a prerrogativa para realizar, por iniciativa própria, da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Comissão técnica ou de inquérito, inspeções e auditorias de natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, nas unidades administrativas dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, e demais entidades referidas no inciso II, tratando-se de instrumentos que transcendem a mera formalidade para verificar in loco a aplicação do dinheiro público.
Em âmbito local, no intuito de conferir efetividade a essa previsão constitucional, o legislador sul-mato-grossense, ao editar a Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul – LC n.º 160/2012 –, estabeleceu em seu artigo 18, que a competência para determinar a juntada de documentos, dados ou informações aos autos de processo é reservada ao Conselheiro Relator; e no inciso II, do artigo 53, que os processos devem ser instruídos, conforme as respectivas competências, pelas manifestações técnicas das unidades administrativas de auxílio técnico aos órgãos do Tribunal; pelos pareceres dos Auditores e dos Procuradores do Ministério Público de Contas; e pelos demais atos determinados pelo Conselheiro Relator (negritei).
Nesse ponto reside o pano de fundo para uma importante observação: a de que apenas ao Conselheiro Relator é dada a competência para emitir juízo de valor sobre as matérias tratadas em todos os processos instaurados pelo Tribunal de Contas. Isto porque as competências constitucionalmente reservadas aos Ministros do Tribunal de Contas da União, em número de nove, e, simetricamente, aos Conselheiros dos Tribunais de Contas Estaduais, em número de sete, não podem ser atribuídas e, principalmente, usurpadas por outras autoridades.
Desse modo, exercitando a competência privativa para elaborar seu regimento interno, dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos – artigo 96, inciso I, alíneas “a” e “b”, da Constituição Federal – que o Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul estabeleceu na disposição do artigo 3.º de sua Norma Regulamentadora Interna, que: Relator é o Conselheiro que, mediante distribuição, recebe o processo para relatar sua matéria e decidi-la singularmente ou sobre ela proferir voto em órgão colegiado, incumbindo-lhe impulsionar o processo e presidir sua instrução em todas as fases.
Nesse contexto, compete aos Ministros e Conselheiros relatar processos; presidir a instrução processual; emitir decisões monocráticas, interlocutórias, ou de mérito; e apresentar proposta de decisão nos órgãos colegiados, relativamente aos processos que lhes forem distribuídos automática e igualitariamente. Portanto, qualquer edição legislativa em contrário representaria patente usurpação das funções constitucionalmente atribuídas àqueles com investidura no cargo.
E, até que o Congresso Nacional, enquanto instrumento do Poder Constituinte Derivado Reformador, venha dar nova estruturação, esta Corte de Contas assim deverá permanecer: Ministério Público, Auditoria, serviços auxiliares e Inspetorias, estas vinculadas diretamente às respectivas Relatorias, trabalhando juntos, integrados e em função da formação dos elementos de convicção necessários ao julgamento monocrático a ser proferido pelo Conselheiro Relator ou à proposta de julgamento a ser encaminhada por ele ao órgão colegiado competente.
CONCLUSÃO
Nota-se, portanto, que desde a edição do Decreto 966-A, de 7 de novembro de 1890, passando pelas Cartas Republicanas, até a promulgação do texto da Constituição de Federal de 1.988, existe uma notória rigidez do modelo quanto às funções a serem desempenhadas pelos Ministros e Conselheiros, os únicos constitucionalmente legitimados como juízes naturais dos feitos que tramitam perante as Cortes de Contas.
É claro que isso não implica dizer que questões históricas e políticas particulares de cada Estado não tenham sido determinantes para construção de seus respectivos Tribunais de Contas, especialmente se considerarmos o fato de que não há uniformidade quanto às datas de suas criações, ou mesmo quanto às disposições de suas normas internas. O que se pretende deixar suficientemente esclarecido é que se o modelo adotado por algum Estado traz em seu bojo qualquer autoridade atuando em funções coadjuvantes àquelas inerentes ao juiz natural do feito – Ministros ou Conselheiros –, não nos parece ideal, ou mesmo razoável, adotá-lo como parâmetro a ser seguido, fazendo com que a exceção se torne a regra, através da imposição de padrões oriundos da vaidade de movimentos classistas, flagrantemente contrários ao texto constitucional e à vontade do legislador constituinte.
Em razão disso, e em virtude da autonomia conferida pela Constituição Federal, o Conselheiro Relator – detentor da competência exclusiva para presidir o feito – dispõe de poder para determinar o levantamento de informações e até mesmo investigações que tornem possível encontrar a verdade real do que se apura nos processos, impedindo que a verdade formal a ela se sobreponha, e fazendo com que a adequada instrução processual resulte em decisões justas, ainda que a causa examinada não esteja nos limites estritos da legalidade ou que possa resultar em prejuízos ao interesse público.
E, para que o Tribunal de Contas possa alcançar a excelência em sua missão de fazer com que a atividade pública se desenvolva de acordo com os interesses do Estado e da Sociedade, é preciso que cada uma das autoridades que o compõem – Conselheiros, representantes do Ministério Público de Contas e Auditores – atuem nos limites estritos do plano constitucional de suas funções, seja no tocante ao regime jurídico de suas carreiras, mas, principalmente, em relação ao exercício das atribuições e competências muito bem definidas pela Constituição Federal e reproduzidas, à sua imagem e semelhança, pela Carta Política do Estado de Mato Grosso do Sul.
[1]Conselheiro e Vice-Presidente do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná; Especialista em Direito Civil e Empresarial pelo Instituto Nacional de Pós-Graduação/UCDB. Cursou MBA em Gestão Pública pela Uninter de Curitiba/Pr; Especialista em Direito Administrativo pela PUC/SP. Mestre em Direito do Estado pela Universidade de Franca/SP; Doutorando em Direito Administrativo, pela Universidade de Salamanca / Espanha. Doutorando em Função Social do Direito Constitucional pela FADISP.
[2] Trecho da Exposição de Motivos ao mencionado Decreto de criação do Tribunal de Contas.
[3] A doutrina administrativista e a jurisprudência predominante do Supremo Tribunal Federal e das Cortes de Contas convergem para o entendimento de que a responsabilidade do gestor público é de natureza subjetiva e que os processos submetidos ao Tribunal de Contas, quando apreciam os atos deste gestor, tratam de direitos indisponíveis.